sábado, 5 de abril de 2008

Do abstrato ao concreto

As criações humanas, de modo geral, se reportam a um importante agente: a cultura. O homem a produz apropriando-se da técnica. No filme “2001, Uma Odisséia no Espaço” (1968) de Stanley Kubrick, a descoberta pelos hominídeos de uma ferramenta de domínio do meio, ilustra o início do emprego da técnica, como instrumento de transformação. A conquista do espaço é a evolução deste instrumento.
O meio natural entende-se como aquele utilizado pelo homem, sem grandes transformações. “As técnicas e o trabalho casavam-se com as dádivas da natureza, com a qual se relacionavam sem outra mediação”. Lembremos das cidades antigas e ou medievais européias, ou das paupérrimas vilas do Brasil colônia, erigidas dentro das limitações naturais e já o meio técnico, surge ante o “espaço mecanizado”, ou seja, a máquina a vapor, a ferrovia e a eletricidade.
O homem sob o jugo do meio natural, está sujeito e vive conforme permite a natureza. As necessidades básicas de alimento e de abrigo definem todo o espaço à sua volta. A moradia é a concretização de uma necessidade imediata humana. Transcendendo a produção do simples teto isolante de intempéries, o homem emprega sentimento e valor a sua criação: é a arquitetura.
Toda a carga histórico-ideológica povoa cada traço da urbanidade, que se materializa e se torna elemento concreto pela arquitetura. Tuan (1980, p.80) expõe muito bem ao dizer que “as mudanças em estilos de arquitetura refletem mudanças em tecnologia, economia e na atitude das pessoas para, com o que é desejável no meio ambiente físico”. O concreto pode ser também instrumento de controle e domínio de uma sociedade.

Muitos que tiveram a experiência de adentrar em uma catedral medieval, relatam como tal edifício toca os sentimentos. A arquitetura tem esse dom. Rossi (1995) a considera como sendo inerente “à formação da civilização e é um fato permanente, universal e necessário”. Tuan (1983, p.19), em sua análise topofílica, explica que “os homens não apenas discriminam padrões geométricos na natureza e criam espaços abstratos na mente, como também procuram materializar seus sentimentos, imagens e pensamentos. O resultado é o espaço escultural e arquitetural e, em grande escala, a cidade planejada”.
A cidade é sentimento, expressa fé, poder, criatividade, orgulho, humildade, simplicidade... O fenômeno urbano é dotado de características que podem conter todo um universo, tornando-se “um símbolo da totalidade psíquica, um microcosmos capaz de exercer uma influência benéfica sobre os seres humanos que entram no lugar ou que aí vivem” (idem, 1980, p.20).
A cidade é arte. “Arte e arquitetura buscam visibilidade. São tentativas de dar forma sensível aos estados de espírito, sentimentos e ritmos da vida diária. A maioria dos lugares não são criações deliberadas, pois são construídas para satisfazer as necessidades práticas” (idem, 1983, p. 184). A cidade concebida como arte, diz Rossi, (1995, p.137) é um artefato pelo qual “podemos observar e descrever ou procurar compreender seus valores estruturais”. As formas e tipologias arquitetônicas para Rolnik (1994, p.17) “podem ser lidas e decifradas, como se lê e se decifra um texto”, pois o “desenho das ruas e das casas, das praças e dos templos, além de conter a experiência daqueles que os construíram, denota o seu mundo”. Daí a necessidade de se entender tudo o que se produz e se cria em um determinado lugar.

A cidade

Uma breve história.


O homem é, segundo Aristóteles, um animal social. Na pré-história, a garantia de sobrevivência do grupo estava intimamente ligada ao grau de união dos indivíduos. Em um ambiente inóspito e cercado de predadores, um varão solitário tinha poucas chances de vida. Esse convívio resultou naquilo que denominamos sociedade, ou seja, um agrupamento de pessoas com um objetivo principal: a sobrevivência. As sociedades primitivas, compostas por caçadores e coletores, eram extremamente dependentes da “generosidade” da natureza. A condição de nômades, portanto, era definida pela disponibilidade do alimento que, ao escassear, forçava o grupo a partir rumo a novas paragens.
Portador da consciência do saber aliando às inteligências concreta e abstrata, o homem desenvolveu criticidade e principalmente, criatividade. Criar cultura, acumular conhecimentos e transmiti-los aos descendentes, possibilitou a esse animal, inventar. Como corolário, a domesticação de animais e posteriormente o cultivo de plantas, a partir de rudimentares técnicas, garantiram a fixação do homem a um território. Essa condição permitiu ao Homo sapiens sapiens conceber uma nova invenção: a cidade.
Construção lenta e progressiva, foi gestada num passado primitivo do homem, quando este transcendeu o simples aglomerado de agricultores, tornando-o elemento urbano. Isso suscitou uma relação mais complexa de organização social, resultando na divisão do trabalho. A partir do excedente de produção, foi possível a alguns homens a não necessidade de plantar para sua subsistência, sendo portanto, responsáveis por outras atividades como a caça e a proteção dos habitantes.
O grau de complexidade das relações urbanas tornou-se mais elevado. O poder dos homens, emanado da cidade, formou os impérios: egípcios, gregos e, mais significativo de todos, o romano, povos basais na constituição do pensamento ocidental, que deixaram grandes legados políticos, filosóficos, sociais, artísticos, entre outros.

A história da humanidade é dinâmica. A todo instante, os rumos e os destinos de milhões de pessoas sofrem transformações; algumas, de modo ligeiro; outras, levam décadas, centenas de anos para serem efetivadas. Por isso, o futuro é incerto. O homem modifica e deixa gravado seu percurso na história. O fim da antiguidade é uma dessas marcas históricas de revoluções, pois muito do que foi conquistado, aprendido, perdeu-se, deixando espaço para a criação e a incorporação de novos valores.
É o início da Idade Média.

Seria quimera imaginar que a história se desenvolveu em círculos, pois os que afirmam que a Idade Média foi um retrocesso, uma era de trevas, suscitam tal pensamento. Em realidade, novas idéias floresceram; utopicamente, as cidades adormeceram. Sob esta perspectiva histórica, a estagnação do comércio vai inviabilizou a manutenção da urbe, que também perdeu o poder centralizador do rei. Os novos tempos instituíram a figura dos senhores feudais, pelos quais os servos devotavam obediência. A posse da terra ditaria o poder (mais terra, mais servos, mais vassalos).
Durante séculos, o Feudalismo imperou, até que alguns fatores começaram corromper este sistema: trocas de excedentes, circulação monetária, propriedade absoluta de terra, homens livres a viver nos burgos, ascensão da burguesia comercial, fortalecimento das monarquias absolutistas. O Renascimento urbano será a nova fase pela qual a cidade se reconstruirá.
Considerar o solo urbano como mercadoria, só foi possível pela atuação de outros processos, como, as transformações oriundas dos meios de produção em que as corporações perdiam espaço para as manufaturas. Na primeira delas a casa do artesão era misto de unidade de consumo e de produção, abrigando todos os elementos do processo produtivo, Já na segunda, havia a separação entre os locais de moradia e de trabalho. Conseqüentemente houve uma nova segregação: a espacial, definida como “movimento de separação das classes sociais e funções no espaço urbano”. Esta fica mais evidente, “à medida que avança a mercantilização da sociedade e se organiza o Estado Moderno”. O uso do solo não se dará sem conflitos, à medida que são contraditórios os interesses do capital e da sociedade como um todo. Enquanto o primeiro, tem por objetivo sua reprodução através do processo de valorização, a sociedade anseia por condições melhores de reprodução da vida em sua dimensão plena.

Na luta pelo viver, a cidade será palco de guerras, revoluções e também de evoluções. Sinônimo de liberdade, torna-se, para muitos, uma prisão. Atrai o homem que busca melhores condições de sobrevivência. O sucesso é para poucos. Os excluídos abundam, largados em esquinas e ruas, ou ocultados pela fumaça das chaminés. Onde estão seus sonhos? Enquanto isso, uma minoria goza de fortuna e status. Àquele que não se encontra em nenhum dos extremos, resta uma esperança: alimentar o sonho burguês do way of life. A cidade do Iluminismo impõe-se à natureza, nasce da razão e é fruto da objetividade. No caminho, o homem.